Lucimar Brasil

Um dos conselhos mais importantes que ouvi recentemente me convidava a fincar o pé nas minhas raízes. Tarefa nada fácil para quem não foi acostumada a reverenciar os antepassados desde a infância, até porque em família sabíamos muito pouco sobre eles. Parte pela história coletiva a que minha raça foi subjugada, parte porque estamos falando de pessoas que tiveram o mínimo de acesso à educação e à cultura. Não havia mesmo como ser diferente. 

Por outro lado, acredito também que o resgate do que ficou para trás pode ser objeto de um processo mais amplo de elevação da alma daqueles que se atreverem a contar histórias que não emergiram ao longo de gerações. É assim que me sinto. 

Fincar o pé nas raízes passa por uma percepção muito lúcida, a partir da simples observação da natureza. Quando uma planta não tem base sólida, o que ocorre com ela? De onde extrairá o alimento tão necessário para manter-se de pé, se desenvolver e crescer em direção a patamares mais elevados de si mesma, rumo à vastidão? Por isso, não é incomum observar que, no processo de colonização, seja de que natureza for, a ideia de apagar memórias, rastros e qualquer outro sinal de uma consciência anterior parece ser o caminho mais eficiente para aniquilar uma pessoa, uma cultura, uma civilização. 

Entretanto, há algo intocável na alma humana. Podem passar dias, anos, séculos e esse algo permanece como que protegido por uma redoma. Vai passando sorrateiro de geração em geração, até despertar o desejo em alguém para deixar tudo mais às claras para si e para outros que virão. Foi assim que, tão pouco tempo depois de ter ouvido o poderoso conselho, uma série de acontecimentos em minha vida trouxe a certeza de que não há nada mais importante do que sair à caça de si e de suas raízes. Como bem traduziu Milton Nascimento, nada a fazer se não abrir o peito numa procura. Os tesouros são incontáveis. 

No início é tudo bem difícil. Romper vínculos. Dizer não. Colocar limites. Despir-se de fantasias que pareciam tão divertidas, mas incômodas por não estarem baseadas em verdades. Enxergar para além das aparências, mudar padrões de pensamento, abandonar crenças antes cheias de sentido. Ver o próprio mundo desmoronar de dentro para fora. Perceber-se sozinha, mesmo estando rodeada de pessoas, para, enfim, esvaziar-se, sem pressa alguma de colocar nada para substituir o que foi desfeito. 

Fincar o pé nas raízes é mesmo um exercício solitário. Entretanto, vez ou outra, surge alguém que compartilha da mesma sensação, divide a mesma experiência, traz luz e encantamento. Nos enche de mais coragem, para seguir nas profundezas onde, embora tudo seja novo, tudo é bem antigo, conhecido. É como voltar para casa depois de tantos anos de afastamento. É reconhecer-se em locais que a alma tão bem se recorda. É sentir o cheiro da vida sem qualquer artifício. É o coração pulsando no ritmo do tambor que regula todos os ciclos de vida-morte-vida. 

Curiosamente, enquanto se vasculha a raiz, as folhas vão ficando mais brilhantes, vistosas e bonitas. A gente cresce, prospera. Aprende a escutar o que antes nem sabia que existia. Nossos sentidos despertam em direção às coisas da alma. Dias atrás, participei de um curso sobre a visão de mundo africana e me identifiquei instantaneamente, sem nunca ter ouvido falar sobre ela antes. Fiquei feliz em ter tanta África em mim. 

Em poucas palavras e considerando o desenho de uma pirâmide - que, inclusive, é uma invenção do continente onde surgiu o primeiro hominídeo -, na base está o verbo “ser”. Descobrir quem somos, de que substância é nossa essência, a partir dos elementos da natureza, é nossa primeira obrigação existencial de acordo com a cultura africana.  A partir desta descoberta, abrem-se “infinitas possibilidades”, para que façamos nossas escolhas em um nível acima de consciência.  A elas se segue o “fazer”, o agir no mundo, para alcançar o “ter” por merecimento. Ou seja, ser para ter, e não o inverso como apregoa a visão de mundo europeia. 

Fato é que desde que finquei o pé na ancestralidade, minha consciência se expandiu na compreensão de que a riqueza material, tão necessária para vivermos nesse planetinha com conforto, segurança e dignidade, tem um forte componente espiritual. O que fazemos com ela, o modo como a dispomos, inclusive, determina o quanto estamos sendo guiados pela sua verdadeira natureza. 

Definitivamente, e de modo mais consciente, tenho ciência que não vim ao mundo a passeio. Desfrutar de uma vida alicerçada em coisas superficiais é pouco demais, enquanto há tanto a viver plenamente, a partir da descoberta de um sentimento humano primordial, puro, honesto e tão claro quanto a luz que encontramos nas profundezas chamado amor. Por si, pelo outro, pelo Criador, pela vida. 

Confesso que, até bem pouco tempo atrás, não conhecia a profundidade do que é sentir o amor incondicional e devo isso ao mergulho pelas minhas raízes. Hoje, posso dizer, sem qualquer medo de errar ou parecer presunçosa que, graças a elas, sou uma mulher mais livre, desapegada, com a alma mais rejuvenescida e pouco a pouco, no tempo da criação, plenamente mais feliz. 

África, estou aqui.

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