No horário combinado ela chegou. Havia feito as unhas das mãos e dos pés, assim como a faxina na alma, de modo que as cores de umas e a transparência da outra estavam em perfeito equilíbrio e harmonia. Na Sapucaí da alegria não havia nota mais justa que dez. Mais justo que isso só mesmo o microvestido alaranjado que marcava as curvas das quais orgulhava possuir. Heranças ancestrais a emoldurar a pele negra e a fazer brotar o sorriso de indizível felicidade apenas por se sentir viva. Afinal, naquele exato instante em que desceria para o parquinho, vidas desapareciam da face da Terra arrastadas por um tsunami chamado Covid-19.
Ela não.
Em poucos minutos estaria enroscada no corpo dele, no cheiro dele, nas histórias dele, na alegria dele, nas delícias dele. Enquanto o aguardava - após a mensagem “desculpe, estou atrasado” que apitou no whatsapp de seu celular -, tentou lembrar há quanto tempo eram amigos e porque, mesmo com tanta água passando por debaixo da ponte de um e de outro, não conseguiam ficar por muito tempo sem se falar, se tocarem, se divertir juntos em projetos artísticos sem chance alguma de sucesso que só eram possíveis na ilusão que os embalava.
Protegida pela máscara descartável, ela ria às gargalhadas de coisas inusitadas recém-chegadas à memória, mas que haviam ficado em um passado distante e, por isso, não tinham a menor importância. O que fazia diferença mesmo era o que estava por acontecer. Duas pessoas sem pecado e sem juízo tentando viver o prazer do corpo de um no corpo do outro. E que prazer. Os beijos dele amoleciam qualquer resistência que poderia nela ainda morar. Ardorosos, eram convite à entrega, à fantasia, aos sentidos. Língua ardente que evaporava palavras completamente dispensáveis que o cérebro feminino teimava em elaborar.
Dias antes, em uma troca de e-mails, ele havia lhe falado, não sem se desculpar pela vulgaridade da expressão, que o “amor de pica fica”. De fato, concordou ela. Há picas que alcançam o ponto G, uma espécie de interruptor que aciona o fio terra capaz de conectar o emocional e o racional que habitam a alma selvagem de uma mulher. E é aí que reside a beleza da expressão que se convencionou vulgar, mas que é de uma graça genuína.
A pica que desperta o sentimento mais profundo de uma mulher não deve nunca ser esquecida, mesmo quando seu dono prefere partir. Afinal, seu propósito não é o da permanência, mas o da revelação do mistério que diferencia mulheres de meninas: o gozo pelo sagrado. Ele havia feito isso com ela. Talvez tenha sido no instante em que distraída aceitou tomar uma taça de vinho na antiga casa dele, onde acabou passando a noite. Ela lembrava que se surpreendeu com a potência masculina impensada, encoberta pela relação profissional que mantinham e pelo fato dele ser casado à época em que se conheceram.
Não vê-lo como homem antes foi a maior de todas as surpresas daquela noite. Guimarães Rosa já sentenciara que “a felicidade se acha em horinhas de descuido”. A pica que fica parece adorar essas horinhas - ria ela divertida, pensando no artigo que escreveria para seu blog, após a nova experiência dos sentidos que viveria em instantes. Além da pica, ele ainda tinha esse poder sobre ela. A inspirava. Curiosa, pensava brincalhona: se o amor de pica fica, o que acontece com o amor de um homem pela xoxota quentinha? Por que esse homem também não desgruda da coisinha?
O celular apitou de novo trazendo-a de volta à realidade. “Estou chegando”. Palavras-chave que a fizeram se certificar de que havia pensado em tudo para a tarde de lazer, com direito a chuvas e trovoadas de prazer. Conferiu a bolsa: camisinha, pomadinha, bala de menta, trilha sonora de chuva no Spotfy do “celu” e a carteira. Aproveitando que não estava sendo notada (pelo menos não aparentemente), ajustou a calcinha nova na cor maravilha que teimava em entrar naquele lugarzinho que ela adorava quando ele passava a língua molhada, para em seguida deixá-la de quatro no ato, como sugeria Rita Lee.
Porém, como tudo na vida, uma mulher madura como ela sabe que a chuva em algum momento cessa, pelo mesmo motivo que se precipita. É da natureza das coisas. Mas essa mesma mulher sabe também que o cheiro da terra feminina irrigada é memória de fertilidade que não se apaga. A junção quase perfeita do masculino dele no feminino dela, do masculino dela no feminino dele não acontece todo dia. É coisa valiosa demais. Quase rara.
Por saber do infinito enquanto duro (quer dizer, dure), ela preparou o melhor sorriso que se viu capaz, quando os faróis do carro dele se aproximaram e piscaram ansiosos acompanhados pelo som da buzina, como quem diz: “tô te querendo. Vem”. E ela foi.