Não foi bem na hora errada, até porque foi obra do acaso, mas assistir o inteligente, oportuno e nauseante “O diabo de cada dia” logo após me deliciar com a história do cocriador do detector de mentiras, em “Professor Marston e as mulheres maravilhas”, lançado em 2017, foi como mergulhar num abismo humano em queda livre e sem rede de proteção.
O choque não foi pela simples comparação entre a crueldade do primeiro e a sensibilidade do segundo, mas antes pela constatação da força destrutiva que existe no não dito - e que tanto instigou a criação do dedo-duro hi tech – na construção do fanatismo religioso, no avanço do moralismo social e, finalmente, na degradação do ser humano.
Curiosamente passados quase que no mesmo tempo histórico (1950 e 1945 – primeira data que aparece em Professor Marston), os dois filmes se antagonizam pelo silêncio dos seus enredos. Se a busca pela verdade e por viver a verdade sobram no drama real do criador da Mulher-Maravilha, em “O diabo de cada dia” a desfaçatez consentida na hora em que palavras deveriam ser ditas leva à perversidade até os que se reconhecem como pessoas de bem.
Bastava que o invento cocriado por Marston fosse usado no veterano de guerra Willard Russell (Bill Skarsgård), para que as histórias dele e do filho, Arvin Russell (Tom Holland), tomassem rumos completamente diferentes. Atormentado pelas lembranças de um sacrifício (sacro ofício) na guerra, o pai jamais teve coragem de contar o que fez, nem mesmo para um tio com quem muito se identificava.
Entretanto, ainda que não falasse sobre o episódio vivido, a cruz, símbolo do seu drama, seguiu fazendo parte de sua vida, a ponto de, com ela, violentar a natureza mais ingênua e íntima da relação de uma criança com seu animalzinho de estimação. E, por conseguinte, manter-se como referência também para o menino.
Tanto é verdade que o altar erguido como oferenda ao que não pôde ser dito, assim como a arma – lembrança da guerra - persistem até o final do filme, sendo lamentavelmente as únicas pontes físicas entre duas gerações de pessoas de bem que sofrem caladas as violências da vida. Obviamente que o detector de mentiras faria estrago às personalidades do casal de serial killers Carl (Jason Clarke) e Sandy (Riley Keough), do irmão dela, o sherife Thompson (Cory Scott Alen) e do pastor Teagardin (Robert Pattinson), por exemplo, impedindo que derramassem sua crueldade latente no pequeno universo de todos nós.
O mais chocante, porém, é a mudez que mata, no caso da Lenora (Eliza Scalen) literalmente, e que faz sucumbir, não sem dor, os poucos personagens não ou menos violentos do filme. A maior nota de crueldade na sinfonia de “O diabo de cada dia”, portanto, não é a perversidade dos que, por um infortúnio, cruzam com os iludidos por um mundo de bondade à beira do caminho, mas o silêncio amedrontado de quem se deixa levar, acreditando que isso pode ser inofensivo.
Se é o diálogo franco, sem reservas, por vezes cruel que abre as portas para que o Professor Wiliam Marston (Luke Evans) e as mulheres maravilhas reais, Elizabeth Marston (Rebecca Hall) e Olive Byrne (Bella Heathcote), possam viver em plenitude um amor incomum, no final dos anos 1920 (e que continua estarrecendo a cafona sociedade da era pós-digital), é justamente a ausência dele que fortalece “O diabo (nosso) de cada dia”.