A atriz, roteirista, codiretora e produtora da série I may destroy you, Michaela Coel, incitou os colegas escritores, na cerimônia de premiação do Emmy 2021, a escreverem sobre as coisas mais doloridas que emergem de seus silêncios, se referindo ao que ela mesma fez em seu trabalho primoroso com o recorte da intricada sexualidade humana, na cosmopolita e diversa Londres, tendo o racismo estrutural como importante pano de fundo.  

Moderna, corajosa e nem um pouco preocupada com cafonices,  falso moralismo ou com a hipocrisia reinante no que tange as diferentes manifestações do prazer sexual, independente do gênero, I may destroy you deixa evidente a fronteira que distingue o sexo como doença do sexo como expressão individual, como traço de uma saudável personalidade, ainda que em construção, a exemplo do que se vê com os três amigos que formam o núcleo principal. 

A história vai ainda mais longe, ao mostrar o quanto todos (incluindo o espectador) podemos nos tornar presas fáceis dos nossos próprios desejos e dos desejos dos outros se não compreendermos seu alto poder de destruição. Talvez por isso, na abertura da série, o título I may destroy you entre na tela como se estivesse sendo digitado naquele exato instante, com o significativo detalhe da correção que grifa e apaga a palavra “you”. Ou seja, mesmo não sendo mulher ou gay negros, fique esperto. Isso aqui tem a ver com você. Por quê? 

Não deveria ser novidade para ninguém que sexo é uma brincadeira de adultos e, quando estes adultos estão em comum acordo sobre as práticas com as quais vão apresentar sua legítima forma de se expressar entre quatro paredes (sim, o modo como você faz sexo entrega muito sobre quem você também é) - às favas com a hipocrisia -, vale tudo. Quando as regras do jogo são aceitas entre os brincantes, o lance flui sem pecado e sem juízo, seja em relações hétero, homoafetivas, trisal ou poliamor. 

Em tese, tudo seria bastante simples. Combinadas as leis, vamos para o jogo, certo? Nem tanto. A questão é que sexo também é manifestação de poder, de dominação, de quem fica por cima, de quem fica por baixo, de quem fica de quatro. Não é por menos que usamos comumente expressões, como comer, devorar, “destruir”, acabar com você e outras tantas, para que não restem dúvidas sobre quem é o dono ou a dona da brincadeira. Dependendo da posição, inclusive, é possível trair ou ser traído em relação aos acordos preestabelecidos. 

Pois é exatamente aí, que o delicioso vai-e-vem de adultos vira palco para a manifestação de comportamentos e personalidades bem doentias, agravada por práticas inescrupulosas que ganham cada dia novos adeptos, como o ato pervertido de gravar e fotografar o corpo do outro, para expor na Internet sem consentimento, ou ainda para obter algum favorecimento financeiro com as imagens.   

Em pleno século XXI, com o orgasmo feminino ainda considerado tabu, não é de se espantar que homens se sintam no direito de objetificar o corpo da mulher (a carne preta é ainda mais barata no mercado), por acreditarem que ele exista unicamente para lhes satisfazer como e quando bem quiserem. Sob este aspecto, a recusa feminina ao sexo é inadmissível. Por isso, “batizar a bebida” com o “Boa noite, Cinderela” é um meio aceitável de resolver a questão. A mulher que cuide de seu copo, porque seu corpo tem dono. Haja paciência! 

Essa realidade está devidamente escancarada em I may destroy you com a cena do estupro da personagem principal que desencadeia todo o restante da trama. É também por outro episódio de abuso sexual que se identifica como a rede de proteção institucional às mulheres ainda é bem mais acolhedora (mesmo que não chegue a lugar algum no tocante à punição dos culpados) que a oferecida aos homossexuais, vítimas de igual estratégia de dominação. 

Fato é que os traumas e as consequências de relações sexuais não consentidas, frutos de uma visão doentia sobre o próprio prazer, ou ainda de uma miopia social que transforma o corpo do outro em objeto de satisfação pessoal, são feridas de difícil cicatrização que tendem a gerar ainda mais abusos e violências. Vencer a dor, provocada em um momento que deveria ser de alegria, fantasia e de contentamento entre personalidades dispostas a se revelarem pelo corpo, é possível, como mostra a série de 12 episódios. O problema é que o percurso rouba precioso tempo de vida que jamais poderá ser resgatado. Nem fodendo.

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