Quando a notícia da morte chegou, eu estava bem em frente ao mar da Praia da Boa Viagem, em Recife. “Seu pai se foi”. A frase que, aparentemente, me exigia uma providência urgente, afinal, eu estava a 2.169,2 km de distância da mineira Juiz de Fora, onde o corpo de meu pai agora jazia na casa que ele e minha mãe construíram e dividiram por quase 58 anos, me paralisou por completo. 

Meus pés afundaram na areia, embora soubesse, ao decolar do aeroporto do Galeão rumo ao de Guararapes oito dias antes, para uma viagem familiar planejada com seis meses de antecedência, que estava correndo o risco de não vê-lo nunca mais com vida. Suspeitava que o câncer de faringe nada benevolente, lhe impedindo de engolir a própria saliva, não me daria essa trégua. E não deu. 

Prestes a me sufocar com o choro e com a garganta queimando como o sol nordestino de quase duas horas da tarde, naquele 2 de fevereiro de 2018, dia de Iemanjá, de súbito fui surpreendida por uma brisa suave, mas ininterrupta, que permaneceu brejeira por um tempo que, até hoje, guardo na alma e na memória. 

À sensação de alívio no corpo, seguiu a certeza de ter feito tudo o que me foi possível, para atenuar o sofrimento de meu pai, de minha mãe e dos meus cinco irmãos, durante aquela terrível doença que castigou nossa família por seis longos meses. E, assim, aos poucos, as águas que me encharcavam de sal a boca foram ganhando o sabor da imensidão azul que se apresentava bem diante de meus olhos. 

Meu Deus – pensei -, não estou aqui por acaso. Era aqui que meu pai, amante do mar, gostaria que uma parte dele estivesse em seu momento derradeiro, sobretudo neste dia dedicado à Senhora das Águas. “Que bom que sou eu”, agradeci comovida, ao constatar que aquela espécie de pororoca das minhas águas com as águas do mar era um convite para uma compreensão muito maior do sentido da morte e da vida. 

Afinal, dia 2 de fevereiro, o mar e o sugestivo nome “Praia da Boa Viagem” só podiam mesmo ser sinais tangíveis do quanto o agora intangível, Velasques Francisco de Paula Filho, estava bem perto de mim. Ao observar o mar em busca de mais traços de sua presença e de significado para a aparente separação física, pus-me a reparar nos arrecifes que, naquele momento, impediam as águas de avançar sobre a areia da praia, enquanto permitiam a formação de várias piscinas naturais, entre os limites de um e de outro. Era exatamente o que a morte estava fazendo com a vida de meu pai naquele mesmo momento: represando-a. 

Entrei em uma das piscinas e, sentada na ponta de um arrecife, fiquei observando calmamente o movimento da maré que começava a subir. Queria ter ainda mais certeza de que o dia mais triste da minha vida seria também generoso e me brindaria com a evidência de estar no lugar certo e na hora certa, para reverenciar a Deus a vida de meu pai, uma vez que era impossível estar presente no velório com o restante da família. Não deu outra. 

Foi exatamente desse ponto de observação no mar, que compreendi o quanto a morte é apenas aparente. À medida que a maré subia, a força da onda vencia a batalha contra as milenares formações rochosas e as águas soberanas avançavam sobre a areia da praia com sua espuma de prata. A vida, enfim, vencia a morte - constatei com o coração invadido por uma inexplicável alegria. “Boa viagem, meu pai”, foi tudo o que consegui dizer diante da vastidão daquele sem fim a me expandir a consciência de forma tão caudalosa. 

Pisciano, devoto de Nossa Senhora Aparecida, cujo manto evoca seu folião coração portelense, esse homem honrado, simples, artista da pintura em paredes foi mesmo um rio que passou em nossas vidas e que, felizmente, nossos corações atentos se deixaram levar. Desde sua morte, feito uma reza e um ritual, todas as vezes que entro em águas salgadas, peço licença, além da mãe Iemanjá, ao senhor meu pai, que me deixou por herança a crença de que a vida é assim, como ver o mar.


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