Quando o filme acabou, não apenas senti a vida correndo nas minhas veias, como pude vê-la fluindo, como o líquido colorido em um exame com contraste. Não foi só “O que ficou para trás” que me deixou assim, mas as inúmeras provocações da trama e as remissões em que me vi enfiada - inclusive ancestralmente -, contribuíram muito para isso. Dos enormes e antigos navios negreiros às minúsculas embarcações dos refugiados africanos de hoje, muitas águas rolaram, embora tudo pareça se repetir no complexo e violento emaranhado social. Vale a pena viver para morrer na praia?

Como um farol, o filme do estreante diretor Remi Weekes sinaliza que sim, mas que nenhum tripulante se engane: o preço do ingresso para sair do barco não é tão barato quanto nos faz crer a ilusão provocada pela geografia do ato de deixar o passado para trás, enrolado no mapa da memória. As ondas da vida sempre trarão à superfície o script e o mistério das relações humanas, seus nós, suas dádivas, suas dúvidas, suas bênçãos, para que o homem universal transcenda a própria existência.

Sob este aspecto, não há combustível mais transcendente do que o amor entre os seres, sejam eles mães, pais, filhos, irmãos, amantes, amigos, animais, plantas. Por isso, como não poderia deixar de ser, o amor farol de “O que ficou para trás” é exigente. Obriga o casal da trama a encarar seus fantasmas mais horripilantes. Aqueles que machucam, ferem, sangram, apavoram e que, em geral, aparecem quando nos dispomos a viver na presença do outro. Este ser que não é o eu.

Embora marido e mulher estejam padecendo da mesma dor (perda da filha e da identidade), a forma como cada um se vê diante do drama é diferente, seja pela bagagem íntima, seja pela bagagem cultural que carregam. E aí está um dos maiores desafios, mas também um dos maiores tesouros da história: o reconhecimento daquilo que está fora “do eu”. O ímpeto masculino de querer apagar as lembranças dolorosas na marra fere a sensibilidade do feminino que suplica, mas ainda assim seu desejo não é ouvido. Por quê? A dor muitas vezes ensimesma e deixa até aqueles que se amam indiferentes ao sofrimento um do outro. A mulher se isola. O homem se inflama.

Sem a distinção entre o eu e o outro, agravada pelo embolar da angústia, a sonhada idealização de paraíso ganha (ganha mesmo) os contornos do ódio, esse ingrediente fundamental para desmanchar a ilusão de permanência que dorme no inconsciente do “foram felizes para sempre”. Aqui aparece o segundo tesouro da narrativa: amor e ódio precisam caminhar juntos nos relacionamentos afetivos. Na dose certa, a raiva, com toda sua poderosa energia de ação, é capaz de trazer o casal para o pé no chão, para o melhor e o pior de cada um, enfim, para que encare a humana imperfeição que o ideal de amor costuma cegar.

Despidos da dualidade extremista que separa e segrega o bem (em geral, o eu) do mal (quase sempre o outro), o presente do ausente, o masculino do feminino, a vida da morte, marido e mulher compreendem que sempre estiveram no mesmo barco. O tempo todo. Empáticos, porque agora se reconhecem humanamente iguais, se unem para acolher os fantasmas de um e de outro e conviverem com eles na paz possível e necessária, para sobreviver lucidamente neste mundo cão.

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