Para Sofia e Marcus


Lucimar Brasil  


Sempre acreditei em minhas outras vidas coexistindo nas várias dimensões do universo e, por isso, não preciso ter urgência para nada, nem mesmo para realizar todos os sonhos, porque alguns não são mesmo tarefas para essa existência consciente. Gosto de pensar que aqui, talvez, seja o lugar para concebê-los, impulsioná-los e não necessariamente torná-los concreto. Realizá-los nem sempre é possível, porque pode nos faltar habilidade ou consciência necessária sobre nós mesmos e sobre o mundo para isso. “O universo é muito maior do que o que você pensa”. Há beleza na incompletude quando se confia que a vida não tem fim, e que a morte é uma reafirmação e uma necessidade da própria vida. Em outras realidades paralelas, com a alma mais desperta pelas múltiplas experiências, “outros nós” seguem vivendo, aprendendo e morrendo o que hoje intuímos. Take it easy. 


Óbvio que pensamentos assim são extremamente ameaçadores para o que o tolteca Don Miguel Ruiz, no livro “Os quatro compromissos”, chama de “sonho do planeta”.  Uma espécie de transe coletivo que inclui todas as regras da sociedade, com suas crenças, leis, religiões, diferentes culturas e formas de ser, seus governantes, suas escolas, seus eventos sociais e feriados, suas infinitas narrativas. Embora já tenhamos nascido sabendo sonhar, somos orientados a acreditar no sonho do planeta e a fazer dele o nosso. Vez ou outra, porém, em todos os corações e, sobretudo, dos famintos por alcançar outras dimensões possíveis nesta existência (até por ter memória vívida delas tatuadas pelo corpo), o desejo pelo sonho original acende uma chama interior que nos faz arder de dentro para fora. 


"Sempre fui uma criança que sentia demais" 

A primeira impressão que esse desejo provoca é de desajuste social, afinal estamos indo contra a correnteza do sonho do planeta, aquele que, desde a infância, age pesadamente, para uniformizar e padronizar nossos comportamentos e, o que é pior, nossos sentimentos. Boa parte de nós sucumbe. Acredita no vozerio, sem mesmo pesquisar de onde ele vem. Sempre fui uma criança que sentia demais. Fatos que passavam desapercebidos para a maioria dos meus irmãos e coleguinhas ressoavam em mim como o sino da catedral. Tem coisa aí, pensava, mas meu coraçãozinho era infantil demais não apenas para acreditar nos sinais que meu corpo recebia pelos diferentes órgãos, como também para decodificá-los. Adultos não davam o menor ouvido a qualquer informação que viesse das crianças. 


A alegria de viver que trouxe de sobra de existências anteriores, e que cultivo com afinco para nunca perdê-la, não impediu e nem impede o desconforto por sonhar meus próprios sonhos. Às vezes, é tenebroso estar viva. Como mulher adulta, porém, tratei de construir uma muralha de proteção a tudo o que me desafia os sentidos, sobretudo o amor, para não ser aniquilada pelo sonho do planeta. Embora me faltem peças no quebra-cabeça para decifrá-lo, antes que ele me devore, topei entrar em um caminho sem volta na perseguição ao sentimento mais incompreensível para mim nesta dimensão. Acreditar nele pressupõe romper definitivamente com crenças que mais cercearam meu sonho original. Aquele que só eu posso realizar por amor ao criador. Apesar disso, não se trata de uma escolha fácil. 


É fácil viver com os olhos fechados, entendendo errado tudo o que se vê”, diz o vivíssimo John Lennon.

É inevitável que no caminho em direção ao amor primordial, ou de volta ao sonho original sonhado por Deus para cada um de nós, a gente se depare com nossos fantasmas. Seres ancestrais que coexistem conosco nesta dimensão, se alimentando dos nossos medos, quer seja para serem curados de suas experiências anteriores, quer seja para nos curar do sonho do planeta, a fim de deixarmos fluir o ciclo da vida/morte/vida tão necessário ao movimento do universo. Não por menos, são eles que mais costumamos temer, porque fomos treinados para não reconhecê-los. 


O motivo é simples. Pessoas com medo não se arriscam a sair da zona onde se sentem confortadas pelo transe coletivo. Permanecem fazendo tudo como todo mundo faz por sentirem-se constrangidas a usar os próprios sentimentos como bússola em uma viagem que precisa ser absolutamente solitária. Como dar crédito a uma única e questionável voz se milhares gritaram e seguem gritando ao mesmo tempo em nossos ouvidos? “É fácil viver com os olhos fechados, entendendo errado tudo o que se vê”, diz o vivíssimo John Lennon.


Ao seguirmos pelo labirinto em busca do sonho original, que a escritora Julia Cameron classificou como “Caminho do artista”, o extraordinário passa a fazer parte naturalmente da nossa rotina. No domingo, dia 5 de junho, fui presenteada com a indicação da crônica do escritor, Joseph Han, no New York Times Magazine.  “Não acredito que os mortos estejam esperando nossa chegada; eles já estão conosco, esperando para serem vistos”, li, quando me preparava para dormir, sem saber que a alguns quilômetros de distância, Sofia Ramirez, amiga a quem havia presenteado com a obra de Julia Cameron dias antes, experimentava, no mesmo instante, uma das histórias de amor mais bonitas que já ouvi. 


"Junto com as flores, ela deveria falar que ele não havia se esquecido”


Ela e Marcus Mascarenhas Ribeiro de Oliveira foram casados por mais de 20 anos, até que, em dezembro de 2018, após luta desigual, o câncer no cérebro separou seus corpos físicos definitivamente. À dor da separação sobrevieram outras, culminando recentemente em uma histerectomia. Com minha costumeira alegria, disse, entre uma dose e outra de nossa bebida preferida, o whisky, saboreado em um charmoso bistrô em Belo Horizonte, para que ela sentisse o vazio no ventre como possibilidade do novo chegar à sua vida; como se seu corpo, gentil e inteligentemente, abrisse espaço para experimentar o ineditismo de um jeito diferente de amor. O amor infinito. 


“Era domingo à noite quando o interfone tocou. Marina, nossa filha, antecipou-se para atender, e disse que uma mulher me aguardava com flores na recepção do nosso prédio sem saber exatamente de quem se tratava. Como não pressenti risco algum, desci para receber a encomenda. Ao me aproximar, identifiquei que a mulher era uma sobrinha do Marcus. Como ela usava máscara, levei um tempinho para identificá-la. Emocionada, disse que precisava me entregar as flores, escolhidas por ela mesma, porque, por duas noites seguidas, havia sonhado com o tio lhe fazendo esse pedido. Junto com as flores, ela deveria falar que ele não havia se esquecido”, contou-me Sofia na última quinta-feira. E prosseguiu. 


“O que ele não havia esquecido era da data do nosso casamento. Faríamos Bodas de Oliveira no próximo dia 14 de junho. Como ele sempre foi distraído com datas, colocava lembretes em vários lugares para não esquecer. Subi em prantos para nosso apartamento. Eu e Marina fomos pesquisar sobre as flores, porque eu nunca as tinha visto antes. Descobrimos que é a flor símbolo do matrimônio. Lu, essa é uma história de amor infinito. Gostaria que você a contasse, escrevesse sobre ela, para eternizá-la, e para que mais pessoas possam acreditar, assim como você, que ele existe”. 


PS:  A frase que dá título a essa crônica ouvi da minha amiga de alma, Mônica Miguel, nesta mesma semana que antecede a data em que o amor fica tão visível como o último eclipse total da lua.

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